segunda-feira, 20 de março de 2017

sonho angústia e alienação


O impasse teórico de Freud em conciliar sonhos – realizações de desejos – com sonhos de angústia pode ser resumido em sua afirmação de que "a angústia é o oposto direto do desejo" (FREUD, 1916). Após a assim chamada "primeira teoria da angústia", em que Freud associa o surgimento da angústia à sexualidade e ao recalque e, portanto, ao desejo, ele aprofunda sua investigação sobre o tema e conclui sua concepção sobre o assunto em "Inibição, sintoma e angústia" (FREUD, 1926). Embora nesta obra Freud ainda afirme que "a angústia de castração é a angústia por excelência", nela ele introduz abordagem radicalmente nova sobre a angústia, que pode ser sintetizada assim: "...concepção da angústia como anterior ao recalque e inextricavelmente ligada, não à sexualidade, mas ao desamparo.

É, na verdade, tal como na proposta de Rank do trauma do nascimento, basicamente angústia de separação e de desproteção, da qual a angústia de castração é apenas uma das versões. A partir de então é angústia de aniquilamento" (RUDGE, 2005).

Diante desta nova perspectiva, o sonho de angústia pode adquirir um significado novo, que é inclusive consonante com a visão médica do que ela define como pesadelo ou transtorno de angústia ligada ao sonho: "sonho carregado de ansiedade ou de medo intensos, acompanhado por lembrança detalhada de seu conteúdo, geralmente associado a ameaças à existência, à segurança ou à autoestima, tendendo a se repetir. Tipicamente comportam certo grau de hiperatividade neurovegetativa. Ao acordar o sujeito está bem orientado" (CID 10, 2003) (os grifos são meus). Sob a ótica psicanalítica, sonho de angústia talvez possa ser definido como aquele cujo conteúdo manifesto ou latente provoca o súbito despertar por uma crise de angústia, comumente associada a manifestações corporais. É no corpo que a angústia se manifesta, porque ela "aponta para algo que sinaliza a verdade do sujeito. Verdade que toma corpo, literalmente" (RODRIGUES, 2007).

Se é complexo teorizar sobre os sonhos, desafio maior é conceituar a angústia, já que ela "não pode ser, de modo algum, objeto de conceito. Entretanto, ao mesmo tempo, ela é o fundamento não conceitual de todos os conceitos". Jean Paul Sartre diz que "a angústia é um falso conceito, é um ponto de universalização do singular." Diante deste desafio, Lacan faz no seminário da angústia a surpreendente afirmação de que "a verdade vem de Kierkegaard através da angústia" (LACAN, 1963). Sören Kierkegaard (1813-1855), teólogo e filósofo dinamarquês, é considerado "o pai do existencialismo" e publicou um livro intitulado "O conceito de angústia" (KIERKEGAARD, 1844), que é fonte de diversos comentários de Lacan em seu seminário sobre o tema. No tópico que tem o mesmo título do livro, é revelador observar que por várias vezes o autor se refere a sonhos, traçando íntima relação entre eles e a angústia: "A inocência é a ignorância ... Neste estado existe calma e descanso; mas existe, ao mesmo tempo, outra coisa ... Nada. Que efeito produz este nada? Este nada dá nascimento à angústia. Aí está o mistério profundo da vida: é ao mesmo tempo angústia. Sonhador, o espírito projeta sua própria realidade que é um átimo e a inocência vê sempre diante de si o nada". Noutro trecho o autor diz que "a angústia é determinação do espírito sonhador e, a tal respeito, ocupa lugar na Psicologia. A vigília estabelece diferença entre mim mesmo e o outro-em-mim, o sono deixa-a suspensa, o sonho traz a sugestão dela como um vago nada.

A realidade espiritual aparece sempre como algo que tenta sua possibilidade, porém some assim que a desejamos captar". Mais à frente Kierkegaard diz que "se formos analisar caracteres dialéticos da angústia, acharemos a ambiguidade psicológica. A angústia é antipatia simpatizante e simpatia antipatizante" porque "... fugir à angústia não é possível porque a ama; porém, amá-la realmente, também não, pois foge dela". O autor conclui que "o surgimento da angústia condensa o fulcro de toda a questão. O ser humano é uma síntese de alma e corpo; mas esta se torna inimaginável se ambos os elementos não se fundirem num terceiro: o espírito. O espírito já está presente ainda que em estado de imediatidade, de sonho. Qual a relação do homem com o espírito? A relação é a angústia" (os grifos são meus). É surpreendente perceber nestes grifos não só a íntima relação entre vazio e angústia, mas também como podemos intuir a própria definição do sonho de angústia, onde a verdade do sujeito aparece como "algo que tenta sua possibilidade, porém some assim que a desejamos captar" e despertamos!

Umbigo e Goela

Certamente não foi de forma ingênua que Freud escolheu a palavra umbigo para, na "Interpretação dos sonhos", referir-se a um momento crucial do conteúdo manifesto dos sonhos. Derivada do latim umbilicus, ela significa "saliência em uma superfície" e é também usada como referência ao "elo biológico que liga o filho à mãe; indica relação de dependência entre uma vida e outra; ponto central de algo" (WIKIPEDIA, 2008). Ao referir-se ao "umbigo do sonho", Freud magistralmente o define como "esse ponto onde o sonho é insondável, onde se interrompe o sentido ou toda a possibilidade de sentido" (FREUD, 1900). Para esse ponto ele escolheu uma palavra que se refere à fundamental relação entre mãe e filho, da qual todo ser humano leva no corpo uma cicatriz indelével.

Se o simbólico refere-se ao duplo sentido e o imaginário à produção de sentido, para Lacan esta ausência de sentido ou sua impossibilidade que caracteriza o umbigo do sonho recebe, no Seminário 11, a denominação de real (LACAN, 1964). "É nesse ponto de falha na malha constitutiva do sonho, correlato ao ponto em torno do qual constitui-se a fantasia fundamental do sujeito, que vamos ver nascer um novo saber que recoloca esse sujeito diante do real que o constitui" (LIMA, 2003). Assim, despertar durante um sonho de angústia é deparar-se com o insuportável que seu umbigo anuncia e recusar-se a enfrentar a verdade que o sujeito não está pronto para revelar sobre si mesmo. Sobre o dormir e o sonhar, Lacan fez três indicações que são valiosas para a nossa construção. Em "Une pratique de bavardage" (1977), define que "o inconsciente é muito exatamente a hipótese de que não sonhamos apenas quando dormimos." De fato, as fantasias e os devaneios da vigília expressam os mesmos desejos, conscientes ou não, que podem vir a surgir nos sonhos durante o sono.

No Seminário 17, Lacan faz duas outras afirmações. A primeira é tão enigmática quanto seu próprio conteúdo: "o desejo de dormir é, de fato, o maior enigma" (LACAN, 1969-70), já que ele não se refere à necessidade de dormir e sim ao desejo de fazê-lo. Mas a terceira destas indicações que é particularmente valiosa para nosso tema, porque ao referir-se ao sonho de angústia, Lacan aponta com precisão que "... só despertamos para continuar sonhando" (o grifo é meu). O sujeito desperta durante um sonho de angústia para continuar dormindo em relação ao real e à verdade que o constitui, por não estar psiquicamente apto a revelá-la a si mesmo.

Neste sentido, a angústia no sonho tem o papel de evitar que o sujeito enfrente algo para o que não está preparado, o que nos permite fazer uma analogia com aquele desempenhado pelas pulsões de autoconservação em promover a necessária transição do princípio de prazer ao princípio de realidade, tal como Freud postulou em "Além do princípio de prazer" (FREUD, 1920). Permanecer indefinidamente sob o princípio de prazer pode ser ameaçador à vida biológica, sendo imperativo que ela se conserve sob a ação do princípio de realidade, imposto por intervenção de pulsões de autoconservação. No sonho, a angústia exerceria função de autoconservação psíquica, na medida em que o súbito "despertar" por ela causado evita que o sujeito se encontre com algo ameaçador e psiquicamente intolerável, sinalizado pelo umbigo do sonho. Esquematicamente seria:

Da mesma forma, não foi ingenuamente que Lacan selecionou a aterrorizante imagem da boca do crocodilo para referir-se ao insaciável desejo da mãe em relação ao filho, ao descrever o estádio do espelho e apontar a importância capital das operações de alienação e de separação na constituição do sujeito (LACAN, 1949). Neste fundamental trabalho, Lacan usa a imagem de uma estaca de pau para representar a Lei do Pai, única forma de impedir que a bocarra do desejo materno se feche irremediavelmente sobre o filho e o devore goela abaixo, impossibilitando ou em muito dificultando que ele venha a se constituir como sujeito desejante. O espectro clínico deste devoramento subjetivo é amplo, indo desde dificuldades sexuais diversas ou insegurança neurótica na tomada de decisões até mesmo a psicose.

O que ocupa o centro deste embate pela sobrevivência psíquica é o desejo, que bascula para o lado da mãe na operação de alienação, fase indispensável na construção de um patrimônio afetivo e na libidinização da criança, mas que deve ceder espaço para que o desejo do sujeito se constitua por força da operação de separação. Ainda alienada, a criança encontra na mãe a completude, pois essa tudo supre e não permite que a falta se instale: a criança experimenta a "falta da falta", uma das formas como Lacan define a angústia em seu seminário sobre o tema (LACAN, 1963). Assim, o sujeito ali-é-nada. É oportuno lembrar-nos de Kierkegaard, quando ele diz que "este nada dá nascimento à angústia" (KIERKEGAARD, 1844). Caso a operação de separação seja eficaz, o desejo bascula para o lado do sujeito que está em formação, que passa a vivenciar a falta e de "nada" transita à sua posição de "não-todo". Esquematicamente, indicaríamos assim:

Neste ponto, aplicando novamente o já mencionado postulado freudiano de que o artista antecipa o psicanalista, recorro a William Shakespeare no famoso monólogo de Hamlet (~1600) para ilustrar as consequências da operação de separação incompleta na vida do sujeito e reintroduzir neste contexto a questão do sonho de angústia:

"Ser ou não ser, eis a questão.
O que é mais nobre? Sofrer na alma as flechas da fortuna ultrajante
ou pegar em armas contra um mar de dores pondo-lhes um fim?
Morrer, dormir, nada mais; e pelo sono pôr ponto final aos males do coração...
Morrer! Dormir; dormir, sonhar talvez: mas aqui está o ponto de interrogação;
porque no sono da morte, que sonhos podem assaltar-nos
uma vez fora da con-fusão da vida? (a escansão, obviamente, é minha)
É isso que nos obriga a refletir, é esse respeito que nos faz suportar por tanto tempo uma vida de agruras.
... Quem tais fardos suportaria, preferindo gemer e suar sob uma vida fatigante,
a não pelo medo de algo depois da morte, país desconhecido de cujos campos
nenhum viajante retornou ...
Assim a consciência nos faz a todos covardes e as cores nascentes da resolução
empalidecem frente ao frouxo clarão do pensamento.
E os planos de grande alcance e atualidade nesta perspectiva mudam de sentido
e saem do campo da ação"
(BRADLEY, 1904 – os grifos são meus).

Seria pretensioso tentar esgotar as inúmeras formas pelas quais este célebre texto pode ser abordado. Sob o prisma do tema deste trabalho – sonhos, angústia e alienação –, entretanto, este monólogo retrata de forma magistral a vacilação do sujeito diante de sua possibilidade de escolher entre permanecer no sofrimento neurótico, "preferindo gemer e suar sob uma vida fatigante", ou se conduzir pelas "cores nascentes da resolução" e vir a concretizar seus "planos de grande alcance e atualidade". Ser ou não ser sujeito, eis a questão! E o que impede que este sujeito vacilante escolha deixar todo seu sofrimento? O "medo de algo depois da morte, um país desconhecido... que nos baralha a vontade e nos faz suportar os males que temos...". Este é o ponto de convergência com o tema do presente trabalho, se entendermos aqui a palavra morte como o sono e sua consequente entrada no reino dos sonhos. Esta proximidade entre o dormir e a morte é literalmente apontada pelo próprio texto de forma insistente, mas diante da possibilidade de sonhar, surge "o ponto de interrogação": "que sonhos podem assaltar-nos fora da confusão da vida?" 

É extremamente ameaçador para este sujeito vacilante se descobrir sem as travas que a con-fusão com o Outro impõem ao seu desejo, limitando e empobrecendo a sua vida. Diante do medo de adentrar no "país desconhecido" dos sonhos e correr o risco de defrontar-se com sua própria verdade e seu desejo, o sujeito desperta de um sonho de angústia e retorna à consciência que "nos faz a todos covardes e as cores nascentes de resolução empalidecem frente ao frouxo clarão do pensamento". Há ainda um detalhe particularmente valioso no texto que ilustra bem a concepção do sonho de angústia aqui apresentada: diante deste medo os desejos "mudam de sentido e saem do reino da ação".

Durante um sonho de angústia, o vetor dos conteúdos manifestos e/ou latentes aponta na direção da separação, até o ponto em que ele se depara com o umbigo do sonho e ocorre uma inversão de sentido e o retorno à posição de alienação. Mas retornar a esta posição significa aceitar o "nada" ao qual o sujeito é reduzido na alienação, o que equivale a um angustiante risco iminente de aniquilamento subjetivo: neste momento ele "desperta" e sai do "reino da ação". É revelador observar que o monólogo se inicia com a palavra ser e termina com a palavra ação. O ser sujeito implica em habitar o campo da ação, o que só é possível se a separação do Outro se completa. Assim, para que se constitua como ser desejante, a vida humana impõe ao sujeito um imperativo categórico: sê-para-ação!

Podemos, portanto, esquematicamente sintetizar os destinos do sonho assim:

Assim, quando a separação do Outro se concluiu e existe realmente UM sujeito, o destino do sonho é, tal como Freud determinou, a realização do desejo inconsciente. A separação pode não ter sido completamente efetivada mas, diante do umbigo do sonho, o sonhador tolera psiquicamente permanecer dormindo, o que lhe dá a oportunidade de haver-se com o real e com a verdade que o constitui como sujeito. Se o sonhador porém, diante deste umbigo, "desperta" com uma crise de angústia, é porque ele experimenta a ameaça inconsciente do aniquilamento subjetivo que a inversão do vetor do sonho gera, ao apontar-lhe o "nada" que o retorno à alienação ao desejo do Outro implica. Usando a imagem criada por Lacan, o sonhador veria diante de si o horror da goela do crocodilo. Este terceiro destino é o que caracteriza, na presente construção, o sonho de angústia, o qual pode ser então esquematicamente representado da seguinte forma:

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