segunda-feira, 20 de março de 2017

Sonhos, angústia e alienação

Ao longe, ao luar, 
  No rio de uma vela, 
Serena a passar, 
Que será que me revela? 
Não sei, mas meu ser 
Tornou-se-me estranho 
E eu sonho sem ver 
Os sonhos que tenho. 
Que angústia me enlaça? 
Que amor não se explica? 
 É a vela que passa 
Na noite que fica. 
(PESSOA, 1965:143)

Há uma inquietante semelhança entre a bucólica paisagem do tranquilo mar azul e a serena fisionomia de alguém que dorme profundamente. Em ambas as situações, por baixo daquela superfície suavemente ondulada ou no íntimo do sonho que este rosto não revela, podem existir perigos inimagináveis que apavoram o mergulhador ou despertam subitamente o sonhador. Este súbito despertar é o que caracteriza o sonho de angústia e descrições desta vivência fazem parte da história da Psicanálise, desde "A Interpretação dos sonhos" (FREUD, 1900) até os famosos casos clínicos de Freud. Dentre estes, é no "Homem dos lobos" (FREUD, 1918) que esta vivência tem um papel central, já que todo o caso é construído a partir da descrição de um sonho de angústia do analisando, o qual foi retratado em uma tela pelo próprio paciente, hoje exposta no museu de Londres.

A angústia sempre foi um tema amplamente abordado pelas diversas expressões artísticas. Há uma famosa pintura de Eduard Munch intitulada "O grito", comumente considerada a imagem da angústia, que retrata em primeiro plano uma figura humana gritando em desespero. Confirmando o postulado freudiano de que o artista antecipa o psicanalista, entretanto, o mesmo pintor deu o título de "Angústia" a outra tela na qual todas as pessoas parecem estar em absoluto silêncio. É com esta imagem ou com a de um grito contido e sufocado, seja em pintura ou em escultura, que a angústia é invariavelmente retratada pelos artistas. O mesmo aspecto é, obviamente, expresso em palavras, como:

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia indiferente a todos.
Faço-os calar...
(PESSOA, 1965)

Mas talvez uma das formas mais concisas e precisas de, poeticamente, descrever este sentimento é a de Ana Cristina César quando diz que "angústia é fala entupida". É revelador observar que, embora entupida, a angústia é fala que precisa ser bem escutada.

Sonhos e Angústia

É redundante enfatizar a importância central que "A Interpretação dos sonhos", grande obra inaugural da Psicanálise, teve na descoberta do inconsciente e na descrição dos processos envolvidos na produção de sua principal manifestação: o sonho. Prova de que este era o entendimento de Freud, que protelou por um ano a publicação da obra para, significativamente, celebrar com ela o início de um novo século, é a central formulação de que "o sonho é a via régia do inconsciente" (FREUD, 1900). Porém, a obra encerra, em meio a outras inúmeras valiosas indicações clínicas, uma que, embora fundamental, frequentemente passa despercebida: a de que "o sonho é apenas uma forma de pensar". Esta perspicaz observação é essencial na construção da tese aqui defendida, porque ela alerta para o fato, óbvio mas comumente subestimado, de que sono e vigília são estados mentais de um mesmo sujeito, com diferentes expressões do inconsciente.

Porém, a formulação revolucionária que sintetiza a ideia central defendida por Freud na obra é a de que "o sonho é a realização de um desejo inconsciente" e são numerosos os exemplos que ele dá como evidências desta sua afirmação clínica. Mas, corroborando o dito popular que reza que "toda regra tem uma exceção", Freud se depara com um impasse e, embora tenha inicialmente reconhecido em "Interpretação dos Sonhos" que os sonhos de angústia pareciam contradizer sua formulação essencial de serem os sonhos realizações de desejos, esforçou-se teoricamente ao longo da obra em adequá-los à sua genial proposição fundamental sem, contudo, satisfazer-se com as próprias explicações. Registros desta frustração se encontram em diferentes passagens, como "parece que os sonhos de angústia tornam impossível asseverar a fórmula geral de que os sonhos são realizações de desejos", ou "sonhos de angústia estão fora do marco psicológico da formação dos sonhos", chegando a confessar que ele gostaria de "omitir toda a discussão sobre os sonhos de angústia, evitar a necessidade de penetrar em todas as obscuridades que os rodeiam".

Numa revisão da obra feita em 1911, Freud termina por caracterizar os sonhos de angústia como uma falha na produção onírica e acrescenta a intrigante afirmação de que "a angústia nos sonhos, insisto, é um problema da angústia e não um problema dos sonhos". O caráter enigmático dos sonhos de angústia tem, desde então, desafiado a Psicanálise a dar-lhes uma direção interpretativa que contemple simultaneamente teoria dos sonhos e conceito de angústia.

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